Para Rafael Portella, não há nenhuma evidência do devido dimensionamento dos danos socioeconômicos
Passados mais de quatro anos do rompimento da barragem de Fundão, da Samarco/Vale-BHP em Mariana/MG, considerado o maior crime ambiental do país e o maior da mineração mundial, o defensor público estadual (DPES) considera que a governança da reparação do crime, centrada no Comitê Interfederativo (CIF), continua falha, deixando um grande contingente de atingidos excluídos de direitos elementares, como o cadastro que lhes garante auxílio financeiro emergencial (AFE) e indenização por danos materiais e lucro-cessante, além de acesso a água potável e atendimento aos problemas de saúde decorrentes da contaminação do Rio Doce pelos rejeitos tóxicos de mineração.
Coordenador do Núcleo de Defesa Agrária e Moradia (Nudam) da DPES e membro do Grupo Interdefensorial do Rio Doce (GIRD), que reúne as defensorias estaduais capixaba e mineira e da União, Rafael Portella fala na entrevista exclusiva a seguir, sobre o amadurecimento da luta empreendida pelos atingidos e entidades de apoio, e das lições deixadas pelo Rio Doce, que já permitiram aperfeiçoar o processo de garantia de direitos aos atingidos pelo crime em Brumadinho/MG, ocorrido há pouco mais de um ano. Confira:
Século Diário: Recentemente a Defensoria Pública do Espírito Santo e a Força-Tarefa do Ministério Público Federal publicaram um comunicado público referente ao cadastro de atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, da Samarco/Vale-BHP, e as Assessorias Técnicas Independentes, para esclarecendo boatos que estariam circulando após a reunião de alguns atingidos do ES e MG com o juiz da 12ª Vara Federal de BH, Mario de Paula Franco Junior. É esse o magistrado que vai julgar o pedido da Samarco de fechamento do cadastro. Por que é tão importante manter o cadastro aberto? Passados mais de quatro anos do crime, há ainda muitos atingidos que não foram reconhecidos e indenizados?
Empresas tão modernas e com tecnologias de ponta como a Samarco, a Vale e a BHP Billiton certamente dispõem de condições técnicas e financeiras para realizar um cadastro rápido e eficiente. Por que isso ainda não aconteceu?
Qual o cenário futuro em que será possível fechar o cadastro sem prejuízo aos direitos dos atingidos?
Certamente, chegar neste momento é muito importante, mas compreendo que o encerramento do programa de cadastramento só poderá ocorrer com a aprovação do escopo do referido programa pelo sistema CIF, ou seja, de suas regras mínimas, para fins de controle e auditoria, bem como do pleno funcionamento das assessorias técnicas, que terão importante missão de dar voz aos invisíveis ao cadastro.
Nesse contexto de fragilidade das pessoas atingidas diante do poder econômico, político e até jurídico das empresas criminosas, qual a importância das Assessorias Técnicas Independentes?
Costumo explicar para as comunidades que, dentre vários conceitos possíveis, as assessorias técnicas são o direito das comunidades atingidas de produzirem provas para si, de forma independente e autônoma, aos responsáveis pelo desastre. Hoje não é assim. Todos os atingidos e atingidas do Rio Doce dependem dos estudos da Fundação Renova, que não gozam da autonomia e isenção necessárias para um adequado levantamento dos danos. Portanto, disponibilizar às comunidades esta ferramenta é apostar na mobilização, no engajamento comunitário e em mesas de negociação por territórios para avançar nos inúmeros problemas do Rio Doce. Além do mais, é uma importante ferramenta para melhorar o acesso à informação das comunidades, pois constarão com técnicos que ajudarão na tradução do conhecimento científico discutido nos mais diversos ramos dos programas de reparação. Nesta mesa, com a assessoria técnica, o atingido terá paridade com a Fundação Renova do ponto de vista técnico, em um ambiente intermediado pela DPES e MPF.
Por que elas ainda não foram contratadas? Há algum processo judicializado que discute os valores e formas de contratação?
RP: Todos os acordos citados buscaram criar e aprimorar um sistema extrajudicial de solução de conflitos. O TAC GOV e os acordos anteriores firmados pelo MPF buscam redimensionar o sistema do TTAC, a partir da inserção do atingido e das assessorias técnicas nos debates acerca dos programas de reparação. O referencial do desastre muda, saindo da Fundação Renova e das mantenedoras para um ambiente mais equilibrado de discussão e deliberação. Não se pode admitir o monopólio da produção de informações técnicas do desastre a uma fundação gerida pelas responsáveis pelo desastre. O sistema CIF, em que pese a importante função de fiscalizar a execução dos programas, não tem conseguido, a nosso ver, exercer a sua função, seja pela falta de instrumentos coercitivos e morosidade na tomada de decisões, seja pelo momento atual de aposta na judicialização pelas empresas para transpor a governança. Movimento muito claro a respeito disso foi a tentativa de desconto do auxílio financeiro da indenização.
Muito se fala que as empresas responsáveis pelo crime contra o Rio Doce se utilizam da máxima de guerra “Dividir para conquistar”. De que forma essa divisão para a conquista/dizimação se dá no dia a dia? E como as populações atingidas podem minar essa estratégia?
A mobilização das comunidades e o engajamento comunitário são ferramentas fundamentais para superarmos os problemas do cadastro e das indenizações. Se estamos falando de dar às comunidades o direito de se reconhecerem como atingidas também estamos dando a responsabilidade e os deveres de procederem desta forma. Assim, nesses quase cinco anos, investimos muitos em atividades de educação em direitos para disponibilizar informações aos atingidos e para auxiliar nas suas demandas. Durante este processo, diversas entidades e segmentos da sociedade civil foram cruciais para o processo. Cito, como valorosos exemplos, o Fórum Capixaba em Defesa do Rio Doce, a UFES (Organon), os fóruns locais, as comissões de atingidos, a Pastoral da Pesca e o Movimento de Atingidos por Barragem (MAB). Creio que este seja um dos motivos para que o ES tenha um número de cadastro de atingidos muito próximo ao de MG, em que um número muito menor de municípios impactados. Além disso, entendo que mesas de negociação coletivas, com territórios ou categorias específicas, são mais eficientes para superar os problemas. É com muita satisfação que realizamos o acordo dos camaroeiros da Praia do Suá no ano passado e acompanhamos neste início de ano a apresentação de indenização aos pescadores de Patrimônio da Lagoa, Sooretama. Também posso citar o acompanhamento que fazemos às famílias removidas do entorno do Rio Pequeno, Linhares, removidas em virtude do barramento e que a elas foi assegurada indenizações e compensações a partir de acordo com a Fundação Renova.
O senhor declarou, após uma reunião com atingidos em Linhares que teve como pauta a nota pública a favor da manutenção do cadastro de atingidos aberto, que observa uma grande maturidade e união dos atingidos no Espirito Santo. Quais são os sinais desse avanço? E de que forma essa organização dos atingidos pode lhes ajudar a conquistar seus direitos, ainda tão desrespeitados?
Percebo o amadurecimento de muitas comunidades, no momento em que as pautas apresentadas ao MPF e DPES têm se diversificado. Muitas lideranças do ES, ao participar das câmaras técnicas e do sistema CIF, têm expandido as suas atuações para além da tríade cadastro, indenização e auxílio. É evidente que são temas importantes, mas, atualmente, questões como saúde, fomento ao turismo, qualidade da água e do pescado, têm sido aventadas em reuniões, bem como o desejo unânime de poder contar com as assessorias técnicas para a continuidade de suas lutas.
Tratando-se do maior crime ambiental da história do país e da mineração mundial, não havia precedentes para lidar com os desafios ambientais, sociais, econômicos e jurídicos dele decorrentes. Que lições esse episódio já trouxe às entidades e aos profissionais de Justiça, na sua opinião?
São muitas lições. Fico especialmente reconfortado de ver os colegas que atuam em Brumadinho terem avanços substanciais em poucos anos. Recentemente conquistaram judicialmente o direito à assessoria técnica, que terão as suas atividades definidas a partir de Planos de Trabalhos sob o encargo dos MPs e DPs. Além disso, foram categóricos em obstar qualquer tentativa de repetir o modelo do Rio Doce novamente, garantiram o cadastramento dos atingidos sem ingerência da empresa Vale, impediram a discriminação de gênero e garantiram o pagamento de milhares de auxílios financeiros, dentre outros. Este, a meu ver, é o legado mais concreto da luta das instituições capixabas no âmbito do Rio Doce. De nossa parte, asseguro que continuaremos atuando com absoluta prioridade na defesa das comunidades capixabas.